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Anderson Sousa

TEXTO-MEMÓRIA

Anderson Sousa é professor e historiador. Está no processo de conclusão da sua tese de doutorado - que gira em torno da História das Artes Plásticas/Visuais no Ceará - pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Além disso, adora Literatura, Cinema e Teledramaturgia. Também gosta, quando possível, de andar e de beber sozinho pelos diferentes cantos da cidade.

 

Nessa quarentena entrei num estágio de introspecção que me conduziu a um reencontro com a Literatura. Após a leitura de alguns livros, sinto que os personagens literários me entendem melhor do que algumas pessoas “reais”. Desejei, em vários momentos, que esses personagens se personificassem diante de mim para que eu pudesse conversar com eles, beber com eles, falar de amor, de desamor, de desejo, de saudade, de ilusões e desilusões amorosas. Falar sobre o tempo.

A citação literária que inicia este texto-memória me fez recuar décadas e viver um interessante momento de déjà-vu. Eu devia ter uns catorze anos e fazia o primeiro ano do Ensino Médio. Nutria uma paixão – misturada com admiração – pelo meu professor de Biologia. Me encantei pela Biologia, assim como me encantei por ele. Foi minha matéria preferida durante algum tempo, sem competição. Lembro até hoje dia e horário das suas aulas: terça, terceira e quarta aulas. 

Certo dia, ele nos levou para uma espécie de Laboratório de Anatomia. Me senti entrando em seu mundo. Sentia a textura e o cheiro das coisas que ele manuseava para trabalhar. Desejei, de alguma forma, ser incorporado àquele lugar. Queria ser um daqueles corpos tocados por suas mãos, enquanto ele explanava seus conhecimentos de anatomia do corpo humano.  

Só tirava nota boa nas suas provas e pensei – seriamente – em cursar a faculdade de Ciências Biológicas. À época, conscientemente ou não, queria ser que nem ele. Ou, quem sabe, queria mesmo era ser ele. 

Durante às férias reli a matéria que foi dada, refiz atividades, fiz leituras dos conteúdos seguintes. No retorno às aulas, tive uma ingrata surpresa: ele não dava mais aulas na escola onde eu estudava. Nunca mais soube dele. Senti vontade de compartilhar o meu sentimento com um amigo próximo, mas tive receio de não ser compreendido. Talvez, se eu tivesse recorrido a algum personagem literário teria me sentido melhor e percebido que aquele sentimento – de falta e de tristeza a permear meu corpo e minha mente – ressurgiria na minha vida, em experiências futuras, com outros nomes, outros corpos, outras texturas, outros cheiros. Foi a minha primeira (des)ilusão amorosa.

Ele pegou com a mão direita e agarrou minhas mãos com a esquerda, como um adulto faria com uma criança, então esfregou até ficarem limpas. Amei o cheiro. De agora em diante eu teria em mim o cheiro da oficina do meu amigo, do seu mundo,

do seu corpo, da sua vida.

(Variações Enigma, André Aciman)

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