top of page
x0002.png

Jorge Rein

FORA O MOTORISTA E O COBRADOR, O RESTO É PASSAGEIRO

Contista, poeta, dramaturgo e tradutor. Nascido em Montevidéu, Uruguai. Residindo em Porto Alegre/RS desde 1971. Alguns livros publicados, textos premiados e/ou encenados no Brasil e no exterior. Redator de conteúdos poéticos no site infantil Canto dos Mafagafos.

Facebook

Instagram

Marcamos um encontro no café do museu. Sou tão assíduo que já consto no acervo. Quando Vânia chegou eu devia estar no meu terceiro expresso. Pedi um cappucino e ela aceitou com naturalidade o galanteio de eu lembrar dos seus gostos depois de tanto tempo. Rimos um pouco, desconfortáveis como dois esquecidos namoradinhos de praia que o acaso faz coincidir numa esquina da cidade no inverno, amáveis inimigos pelo avesso, carecas de saber que não pode dar certo. Pensamos em jogar “o amor é cego”, como a gente fazia em outros tempos, mas nos sentimos velhos. Então paguei a conta porque, eventualmente, ainda sou um cavalheiro.
 

Saímos e na praça o frio rachou os nossos crânios com trépanos de gelo enquanto que a poeira, na carona do vento, nos mostrava as vantagens de ser cegos. Em emergências climáticas de tal envergadura, é um crime hediondo não abraçar o parceiro. Ante a força da lei, nos submetemos. Faltou um passo até o beijo. Nós o demos. E mais teríamos andado, não fosse ainda tão cedo. Então pegamos o primeiro ônibus que atracou naquele ponto do deserto. Não interessa o destino, nos dissemos. Não interessava mesmo. A urgência era trocar as intempéries pelo aquecimento, partilhar confidências, talvez amenidades e também sacolejos. Por que não? A vida é assim mesmo.


–Estás namorando alguém?


Aconteceu na hora um solavanco salvador, um guincho, uma freada brusca e o cheiro dos pneus derretendo suas digitais no asfalto. O motorista abriu a janela e despejou seu verbo de paralelepípedos no para-brisa de um caminhão que se atravessara. Após a usual troca de cumprimentos e das lembranças às respectivas genitoras, a viagem continuou.
 

Ficamos em silêncio, mas nos demos as mãos e eu não lembrei Miranda. Bom sinal. O ônibus deixou a avenida principal e embrenhou-se em ruazinhas secundárias que eu nunca tinha visto. Fiquei desorientado. A sensação não é ruim. Me entreguei ao motorista, que talvez ainda soubesse por onde devia ir. Um motorista de ônibus é um pouco como um deus. O corpo de Miranda tremeu ligeiramente encostado no meu. Perdão, era o corpo de Vânia... Acho que recaí.

–Fim de linha! Destino!– berrou o motorista, como se acreditasse naquela história de ser quase que um deus.


Não precisava ser tão literal. O ônibus estacionou na frente do portão de um cemitério. Passeamos entre os túmulos, profanando as mensagens doídas dos epitáfios como se fossem inscrições de banheiro ou frases de para-choque de caminhão. Até a letra morta é alimento. Todo escritor tem algo de urubu. Vânia andava ao meu lado. De repente parou e me encarou.
 

No caminho de volta me prometeu silêncio. Seria um segredo apenas entre nós. Levei-a até o meu apartamento. Não que tivesse qualquer obrigação. E então fizemos sexo, ou tal vez fosse amor. Às vezes a miopia da gente não distingue. Pensei enxergar o sorriso de Miranda desenhado nas volutas de fumaça do cigarro que acendemos no após. Era pura ilusão.

bottom of page