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Galvão Furtado

CANINOS

Galvão Furtado é cearense, engenheiro e escritor. Nascido entre o dia das bruxas e o dia de finados, vê a arte como um arremedo da eternidade.

Lembra quando nossa amiga falava dos caninos lindos que eu tinha? E dos caninos lindos que nossos filhos teriam? Era evidente que eles teriam caninos lindos como o pai. Lembra que você sempre foi linda, mas nunca teve caninos tão lindos quanto os meus? Lembra que meus outros dentes eram tortos e amarelos, mas os caninos eram lindos e únicos? Talvez meus caninos fossem a única coisa positiva que havia em mim, lembra?

Sobre nossa amiga só consigo lembrar que se graduou como dentista, especializou-se e casou com outro amigo. Uma vez que seus caninos não eram dos melhores, certamente seus filhos não teriam caninos bonitos. Mas não lembro se meus amigos tiveram filhos.

Também não lembro se vivi com os dentes tortos ou se consegui consertá-los. Lembro que perdi um na piscina; outro, quando caí em um bar. Não me lembro de onde ficava o bar, muito menos de quem me socorreu.

Não lembro o que ocorreu a meus lindos caninos que seriam transmitidos a nossos filhos. Não lembro o que ocorreu a nossos filhos. Sendo bem honesto, não lembro se tivemos filhos. Não lembro muito bem como foi minha vida. Não lembro sequer como se deu meu fim. Lembro menos ainda o que ocorreu a você.

E, no entanto, não se lembrar de nada talvez seja uma forma de continuar lembrando.

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